terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Resenha: As águas-vivas não sabem de si


No livro "As águas vivas não sabem de si" o som tem muita importância. Ele aparece em forma de conversas, lamentos solitários e chamados ancestrais. Assim, penso que uma boa forma de começar a ler esta resenha é escutando a playlist especial da história, preparada pela própria autora:



"De olhos fechados, ela pairou nesse lugar desconhecido de vozes e sons misteriosos. Sons formam imagens. O doutor sabia de algo, as baleias sabiam mais que ele, e Corina, que preferia não saber de nada, acabou enxergando. Na escuridão sob suas pálpebras, seu ouvido a conduziu para a imagem de algo chamando, um borrão prateado, tentáculos, uma angústia." (página 142)


whoa v whale

Na estação Auris a protagonista Corina, mergulhadora, e seu colega, Arraia, a engenheira Susana, o pesquisador Martin e seu assistente, Maurício estão trabalhando em uma expedição no fundo do oceano para registro acústico de ecossistema hidrotermal e testando de trajes de mergulho. Presos em uma caixa metálica em grande profundidade, todos eles guardam segredos e, mais resistente que os trajes é a armadura que eles constroem em torno de si.

Em segundo plano, temos a narrativa que, ao meu ver, foi a mais fascinante: a do ponto de vista do próprio mar. Polvos, águas-vivas, baleias e outras espécies tem voz na história. As criaturas, dotadas de inteligência, sentimentos e até mesmo personalidade, colocam à prova  nossa arrogância em nos enxergamos como única espécie pensante.

Outro ponto que a autora também aborda é como as criaturas se enxergam como parte da Terra, parte do oceano, enquanto o ser humano insiste em se enxergar como um ser à parte, e pior que isso, como dono do planeta e das formas de vida que o habitam.

jellyfish animated GIF

"...mas não passavam despercebidos com egos tão grandes - o meu planeta, achavam, mas nunca a percepção de eram o planeta, porque o ego sempre fazia o ter vir antes do ser, fazia os indivíduos se desgrudarem do todo e acreditarem tão firmemente que eram algo à parte, que flutuavam sozinhos no espaço, tão pequenos, devorados pela imensidão do abismo."

Porém, essa parte da história não se dá de forma linear. Ora vemos criaturas que acompanham a expedição, ora retornamos até o momento em que a vida surgiu na Terra. Afinal, como o próprio livro diz, "o que são as eras quando se tem a idade do planeta?"

"Descobriu com alguma infelicidade que ser um indivíduo era também ser pequeno e sentir medo o tempo inteiro. Então foi invadida por uma enorme tristeza: se todos aqueles à sua volta também fossem como ela, então igualmente eram seres preenchidos de medo, sofrimento e solidão, todos fazendo o seu possível para sobreviverem, assim como ela." (página 245)

animals ocean swimming floating jellyfish



Infelizmente senti alguns problemas com a velocidade de desenvolvimento da história. No início o livro é bem arrastado e, quando vamos nos aproximando do fim, uma série de acontecimentos vão se atropelando. Assim, passamos muito rapidamente pelos momentos de clímax da história e quase não temos tempo de os assimilar ou refletir sobre eles.


Outro ponto que me incomodou diz respeito à personagem Corina. Nos é dito que a personagem é uma mergulhadora com anos de prática, mas isso não condiz com suas atitudes egoístas, perigosas e imprudentes durante o trabalho. A autora tenta nos convencer afirmando várias vezes durante o livro que Corina é muito teimosa, porém o grau de risco das atitudes dela faz "teimosia" parecer uma explicação um tanto quanto besta. O personagem Arraia, por exemplo, também se arrisca na expedição, mas em poucos parágrafos Aline nos conta uma história que convence muito mais do que as várias páginas gastas com Corina que acabam por descrevê-la apenas como "teimosa". O segredo que Corina guarda, que deveria ter grande importância para a trama, também quase não é desenvolvido.


O que mais me impressionou foi a forma que Aline domina a linguagem, nos fazendo ouvir desde os murmurar do oceano , o barulho das bolhas de ar saindo dos mergulhadores, até o ruido metálico do gerador de Auris. Durante a leitura eu tive a certeza de que a autora devia ter mergulhado centenas de vezes para conseguir descrever aquele cenário com tanta habilidade. Imaginem só a minha surpresa quando, em seu blog, a autora diz que não sabe nem nadar? 


 jellyfish

Outro ponto que me agradou bastante foram os trechos do livro do Dr. Martin, extremamente realistas. Mais uma prova do domínio magistral da linguagem por Aline.


Apesar das deficiências que encontrei na construção de personagens e na velocidade da  narrativa, a beleza, a poesia e as reflexões sobre nossa existência e a solidão tornam esse livro uma preciosidade e eu recomendo bastante a leitura.


" 'Sabia que as baleias viajam em túneis acústicos para poder chamar pelas outras? É impressionante, eu já vi'. Ela pensou nos buracos que as pessoas carregavam dentro de si e imaginou que não fossem defeitos ou problemas, mas canais pelos quais era possível navegar para alcançar o outro, porque ninguém podia funcionar sozinho."(página 255)


whale



Classificação:



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Resenha: De gados e homens


  Ao descrever Ana Paula Maia em um vídeo¹ do canal Homo Literatus, Vilto Reis usou a palavra "única". Ele não poderia estar mais certo. Nunca li nada parecido com esta narrativa, que, apesar das poucas páginas, possui muita profundidade. Jogando por terra os conceitos sobre o que é "literatura feminina", a autora nos leva ao mundo sujo e insalubre dos abatedouros, dá voz aos "brutamontes" que fazem o trabalho que ninguém quer. Quem são esses homens?


"Apanha o terço  que carrega sobre o peito e faz uma oração movendo continuamente os lábios, emitindo vez ou outra um som sibilante que se mistura aos zunidos dos pernilongos ao canto das cigarras. Edgar Wilson  gostaria de saber o que um homem como Helmuth pede em suas orações; talvez o mesmo que ele, talvez o que todo homem ali peça."(página 77)

Edgar Wilson, atordoador dos bovinos no Matadouro Touro do Milo, se sente próximo dos ruminantes e os conhece como ninguém. O que ele faz vai além desmaiar os animais antes da degola, é um ritual de encomendar a alma de cada animal. Ele cicia e olha dentro dos olhos de cada um deles, sempre buscando encontrar algo, mas a única coisa que consegue enxergar naquele negrume é o seu próprio reflexo. Ao nos apresentar Edgar, Ana Paula Maia desconstrói o estigma do trabalhador braçal com mente rasa. Apesar de ser um homem de poucas palavras, ele nos surpreende com suas reflexões.

"Em lugares onde o sangue se mistura ao solo  à água é dificil fazer qualquer tipo de distinção entre o humano e o animal. Edgar sente-se tão afinado com os ruminantes, com seus olhares insondáveis e a vibração do sangue em suas correntes sanguíneas, que às vezes se perde em sua consciência ao questionar quem é o homem e quem é o ruminante."(página 68)

O ambiente do matadouro, contraposto à assepsia da fábrica de hambúrgueres, é brutal, sujo.  A autora expõe como tentamos nos distanciar da realidade de que aquilo que comemos antes foi um animal vivo, morto com o propósito exclusivo de nos alimentar.

"Cumprido o seu dever, ele vai para a cozinha do alojamento e frita os hambúrgueres. Com os colegas comem toda a caixa, admirados. Assim, redondo e temperado, nem parece ter sido um boi. Não se pode vislumbrar o horror desmedido que há por trás de algo tão saboroso e delicado." (página 21)


Ela também denuncia as péssimas condições de trabalho em que os homens se encontram. A sujeira, a falta de equipamentos de segurança, as intermináveis horas de trabalho e os salários baixos. Os personagens, porém, parecem conformados com essa realidade. Em um lugar deserto em que muitos passam fome, ter um trabalho e um teto é ser afortunado.

Não há como ler este livro e sair impune às provocações da autora. O que distingue os homens dos animais? Porque não enxergamos a morte deles como assassinato? Porque insistimos em desviar o olhar e a mente dessa situação?

Apesar da temática polêmica, o livro passa longe de ser panfletário, deixando o leitor apenas com questionamentos, sem fornecer respostas simplistas.

Uma última observação a ser feita é que livro incrível como esse merecia uma edição à altura, o que não ocorreu. A impressão possui falhas, parece que foi feita com a tinta acabando, o corte das folhas não está completamente reto e a foto da autora na orelha do livro está muito escura, quase não enxergamos. Mas esses pequenos problemas não comprometem em nada a leitura,  aponto apenas o que poderia melhorar. 


Classificação: 



domingo, 29 de janeiro de 2017

Resenha: Em Algum Lugar nas Estrelas




Apesar de "Em Algum Lugar nas Estrelas" ter sido um dos livros mais comentados na internet em 2016, por algum motivo ele não estava na minha lista de leituras. Porém, por destino ou bom gosto literário de meu namorado, ganhei este livro de presente no final do ano e resolvi dar uma chance a ele.  

A primeira impressão que tive foi de deslumbramento com a capa e ao abri-lo, me surpreendi ainda mais ao ver que as folhas de guarda e folhas de rosto estavam cheias de ilustrações belíssimas das constelações. Uma das características da Editora Darkside é o capricho com a edição dos livros, e este com certeza mantém o padrão. Agora, antes de passarmos à resenha, comece a escutar a playlist especialmente criada para o livro pela Darkside:


Fonte da imagem: http://www.darksidebooks.com.br/wp-content/uploads/2016/04/Em-Algum-Lugar-3D-livro-aberto-completo.png


O enredo se passa em 1945 sob o ponto de vista de Jackie Baker, um garoto do Kansas de 14 anos que, ao subitamente perder a mãe, se vê sozinho com o pai, um capitão da marinha atormentado pela guerra que não sabe como lidar com o luto e como cuidar do filho que não vê a quatro anos. O menino então é colocado na Escola para Meninos Morton Hill, um colégio interno próximo ao estaleiro onde seu pai ocupa um posto. Longe dos campos planos do Kansas, ele tenta se adaptar à rotina do colégio até conhecer Early Auden.

"Li em algum lugar, provavelmente na revista National Geographic, que é possível saber muito sobre as pessoas pelo que elas idolatram. Acho que cada lugar tem seus templos. Na minha cidade, a igreja é o centro de tudo: bazares, batizados, casamentos, leilões, bingo. Na minha antiga escola, o campo de beisebol era o nosso altar. As pessoas da cidade enchiam as arquibancadas e torciam pela vitória. Nós, os jogadores, conhecíamos todas as escrituras do evangelho do beisebol e todos os santos padroeiros: Babe Ruth, Lou Gehrig, Ty Cobb e Joe DiMaggio. No momento em que pisei no estaleiro, soube que aquele era o altar da Morton Hill."

Inicialmente, Jackie se sente intimidado pelas "esquisitices" do garoto solitário, que mal assiste às aulas, determina que cantor vai ouvir pelo dia da semana e pelo clima e que acredita que o número Pi conta a história de uma pessoa real. Eles se aproximam quando Early se oferece para o ajudar a praticar remo e a restaurar o barco de Jackie para participar de uma regata. Quando as férias chegam e Jackie é deixado sozinho porque o mau tempo impediu o pai de buscá-lo, Early o convida para uma cruzada. Ele precisa desesperadamente encontrar Pi, que estaria perdido e em perigo. Assim, em meio à história, temos também as narrativas de Early sobre Pi.

"Antes de as estrelas terem nomes, antes de os homens saberem como usá-las para  traçar seus caminhos, antes de alguém se aventurar além do próprio horizonte, existia um menino que se perguntava o que havia além de tudo aquilo. Ele olhava para as estrelas com admiração e fascínio, mas o fascínio não era só consequência da veneração. Era fruto também de uma pergunta: por que?"

A doçura desse livro me encantou profundamente. Apesar de tratar de temas complexos, a linguagem é poética, suave e os personagens cativantes. Os trechos em que Jackie fala sobre a mãe são maravilhosos. Embora não se encaixe perfeitamente no gênero fantasia, o livro possui alguns acontecimentos sobrenaturais, que fazem o leitor se questionar se aquilo realmente teria acontecido ou se era imaginação dos garotos.

"Ninguém pode dizer nada sobre saber o nome das estrelas. O céu não é um campeonato ou uma prova. A única pergunta é: você consegue olhar para cima? Absorver tudo aquilo? Quanto ao nome das constelações, elas não são meio nem fim. As estrelas não estão presas umas às outras. Estão lá para serem admiradas. Olhadas, desfrutadas."

Outro ponto marcante do livro é a maneira com que a autora aborda o autismo de Early. Ele não nos provoca pena, mas sim fascínio, o enxergamos com um dom extraordinário. No momento em que comecei a leitura, logo me lembrei de Daniel Tammet, um matemático brilhante que enxerga os números com cores e formas. Minha suspeita se confirmou quando, ao final do livro, a autora afirma que se baseou em Tammet para criar o personagem.

Esta bela história sobre amizade e reconexão com a família agrada qualquer idade, tem a dose certa de adrenalina e sentimento, as descrições nos fazem sentir como se estivéssemos realmente no Maine e a paixão de Early é capaz de despertar a curiosidade matemática até mesmo naqueles que mais a detestam! Eu recomendo bastante a leitura!

Um abraço, 
Bella

Minha nota: 


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Resenha: Enterro Celestial


  A primeira vez que ouvi a respeito da cultura tibetana foi no documentário Wild China. Fiquei fascinada como a religião budista fez com que o ecossistema do Tibete, vital para as monções, se mantivesse praticamente intacto. Afora isso, eu não sabia mais nada sobre ele e então quando ouvi falar sobre Enterro Celestial, logo minha curiosidade foi aguçada e eu resolvi lê-lo.

  O livro, escrito pela jornalista chinesa Xinran, é um relato de uma história real. Shu Wen, uma chinesa recém casada, decide abandonar sua vida e sua família na China para ir atrás do marido que, servindo como médico para o Exército Popular de Libertação, foi dado como morto em uma missão no Tibete. Sem saber falar a língua local ou mesmo como sobreviver em um ambiente tão inóspito, ela mergulhou num universo completamente desconhecido. Tudo que ela sabia parecia ser inútil no Tibete.

"Wen lembrou que sua mãe dizia que uma jovem chinesa educada devia ter formação completa em seis coisas: música, xadrez, caligrafia, pintura, costura e culinária. Uma mulher do Tibet era valorizada por um conjunto muito distinto de talentos. Wen corou ao pensar na sua incompetência. Nem mesmo sua formação médica era de alguma utilidade ali."

  Durante um tempo ela viveu com uma família de nômades com um estilo de vida ancestral. A rotina e a pouca variação na paisagem fazia com que os dias, meses e anos parecessem intermináveis, dando à protagonista uma sensação de impotência e desespero. Em nossas mentes ocidentais e no momento atual de globalização não conseguimos conceber como ficar anos sem ter notícias da pessoa amada ou sem poder se comunicar com a família.


"O outono virou inverno e o inverno virou primavera. Wen descobriu que já não acompanhava a sequência dos anos que passavam. Simplesmente seguia a família quando eles mudavam em busca de pastagens frescas e de abrigo contra as forças da natureza. Para ela, todas as montanhas, todas as campinas pareciam iguais; para eles havia distinções sutis."

  O isolamento faz com que Wen somente descubra que a guerra entre chineses e tibetanos acabou há muito tempo quando se encontra com alguns chineses na capital, Lhasa. Ao retornar à China ela não reconhece a cidade natal, tamanhas às mudanças que o país sofreu nos últimos trinta anos em que ela esteve no Tibet.

  O livro é um relato tão vívido que durante várias vezes me emocionei e, ao terminá-lo, meu coração ainda doía ao pensar em Shu Wen. Tenho certeza que este foi um dos melhores livros que já li. As condições severas em que a protagonista se encontra são tratadas de forma muito delicada, até mesmo poética. Seja para ler uma bela história de amor e perseverança ou para descobrir sobre os costumes e a cultura tibetana, recomendo que você leia este livro.

Abraços,
Bella

Minha nota:

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Resenha: A vida invisível de Eurídice Gusmão



 A rejeição dos escritos de uma das personagens do livro de estréia de Martha Batalha parecia antever o que aconteceria com a autora. Nenhuma das grandes editoras brasileiras queria publicá-lo¹. Porém, tudo mudou na Feira do Livro de Frankfurt de 2015, quando a editora alemã Sührkamp adquiriu os direitos da obra. Logo após, editoras da França, Itália, Portugal, Holanda e Espanha também fizeram a compra. Por fim, a Cia das Letras, que não havia se interessado pelo livro inicialmente, voltou atrás e decidiu publicá-lo em 2016. Intrigada por essa história e pelas críticas favoráveis que o livro recebeu, decidi que iria lê-lo. 

  Eurídice é "a mulher que poderia ter sido", assim como muitas de nossas mães e avós. Cheias de qualidades e talentos, mas condenadas pela sociedade patriarcal a serem servas do lar. Não apenas isso, mas servas do lar que devem fazer todas as tarefas com perfeição, não pensar em nada além de tais tarefas, se manter atraentes para o marido e estar sempre de bom humor. Mulheres com as mais diversas personalidades e interesses foram colocadas dentro de uma caixinha enquanto lhes diziam: Aqui é o seu lugar. E ai de você se ousar sair daí.

"Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas que ela lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar." (pag. 12)


  Uma das características principais do livro é apresentar ao leitor como as personagens chegaram onde estão, como foi seu desenvolvimento psicológico. No caso de Eurídice, isso aconteceu graças à Parte de Eurídice que Não Queria Que Eurídice Fosse Eurídice, o predador da psique, que aos poucos foi a convencendo a se conformar ao status quo e deixar de lado sua essência.
  
  Ainda sobre o desenvolvimento das personagens é muito interessante como a autora utiliza os típicos "clichês", como a vizinha fofoqueira, a mãe solteira, a prostituta, a sogra chata, o marido implicante, etc e os desconstrói. Nenhum dos antagonistas é apresentado como vilão. Todos tem a sua história contada de forma a entendermos porque agem de determinada forma.
  
  Um grande destaque é Filomena, uma ex-prostituta que se torna cuidadora de crianças. Doce, carinhosa, ela destrói todos os estereótipos e protagoniza uma das passagens mais belas do livro.

  Também destaca-se a narrativa sobre Zélia, a vizinha fofoqueira, que vem nos responder como alguém se torna tão amarga a ponto de se deleitar com o sofrimento alheio.

"Zélia, vizinha da casa ao lado. Zélia era uma mulher de muitas frustrações. A maior delas era não ser o Espírito Santo, para tudo ver e tudo saber. Zélia estava na verdade mais para Lobo Mau do que para Espírito Santo, porque tinha olhos grandes para ver melhor e ouvidos grandes para ouvir melhor e uma boca muito grande, que distribuía entre os vizinhos as principais notícias do bairro.
...
Zélia não se tornou um simulacro de ornitorrinco assim, de uma hora para a outra- essas coisas de evolução demoram para acontecer. A transformação começou ainda na infância, quando o que era para ser dom se tornou pesar. Do pai ela herdou o gosto pela notícia, da mãe a vida restrita ao lar. Do mundo ganhou desgostos. Do destino a falta de escolhas. Formou-se assim a essência da fofoqueira."(pags. 15 e 16)



Pela leitura dos trechos, você já deve ter notado a deliciosa escrita da autora. Apesar de o livro contar histórias trágicas, a escrita é muito leve, não subestima o leitor e Martha possui um humor muito refinado. A ironia e a crítica social presentes no livro me lembraram muito as de Jane Austen, como esta, por exemplo:

"...Aquele, ela sabia, era um bom marido. Antenor não sumia na rua em orgias e em casa não levantava a mão. Ganhava bem, reclamava pouco e conversava com as crianças. Ele só não gostava de ser incomodado quando houvia seu rádio ou quando lia seu jornal, quando dormia até tarde e quando descansava depois do almoço, e desde que seus chinelos permanecessem em paralelo ao pé da cama, que seu café fosse servido quase fervendo, que não houvesse natas no leite, que as crianças não corressem pela casa, que as almofadas permanecessem na diagonal..." (pag.33)




  Outro recurso de humor bastante usado pela autora é dar nome em letras maiúsculas para os acontecimentos na vida de Eurídice, como as "Noites de Uísque e Choro", noites em que o marido se embriaga e a agride verbalmente por ela não ter sangrado na lua de mel. 

 Martha Batalha utiliza esse episódio para demonstrar, além da falta de liberdade sexual da mulher, o pouco de conhecimento a respeito do corpo feminino no início do século XX. O hímen é uma membrana que recobre parcialmente a entrada da vagina, resquício da formação embrionária. Alguns cientistas acreditam que ele existe para proteger a vagina de infecções durante a infância. Por muitos anos, o "sangramento" que pode ocorrer com o rompimento do hímen foi associado erroneamente com a virgindade. Existem mulheres que não possuem hímen e mulheres cujo hímen nunca se rompe. Ele também pode se romper durantes atividades cotidianas. Outro tabu é o de que o rompimento do hímen causaria dor, o que não é possível já que ele não possui terminações nervosas.

  No livro, Eurídice, a irmã e a mãe não sangram na noite de núpcias, e isso perturba tanto a mãe que ela até mesmo procura um médico, que a explica que aquilo é normal. Apesar disso, a ignorância dos maridos de Eurídice e de D. Ana, aliada à mentalidade da época, faz com que eles usem isso para diminuí-las.

  Outra personagem que chamou minha atenção foi Maria Rita, essencialmente diferente das demais personagens do livro por tomar a decisão de ser uma "má dona de casa" para dedicar-se à poesia. Em suas próprias palavras, ela é um espírito livre que algemaram ao lar. Percebi nela muitas semelhanças com Sylvia Plath.
  
  O livro me agradou bastante, mas senti que a narrativa se perdeu um pouco no final. Eurídice é deixada de lado e as histórias dos personagens secundários se alongam. Vários anos se passam e em poucas páginas nos deparamos com outra Eurídice. A  velocidade da narrativa modifica-se completamente e não conseguimos acompanhar o desenvolvimento da protagonista. Diz-se que "Eurídice voltou-se ainda mais para dentro de si" mas nada disso é compartilhado com o leitor. 

  Apesar disso, "A vida invisível de Eurídice Gusmão" é um livro memorável e posso dizer que estou ansiosa para os próximos lançamentos de Martha Batalha. 


Minha nota:
Resultado de imagem para quatro estrelas

  
Abraços,
Bella


"Martha Batalha nasceu em Recife, Pernambuco, mas cresceu no Rio de Janeiro. Foi repórter por muitos anos e criou a editora Desiderata, hoje parte do grupo Ediouro. Mudou-se para Nova York em 2008, onde trabalhou no mercado editorial. “A Vida Invisível de Euirídice Gusmão” é seu primeiro livro. Foi vendido para vários países e será adaptado para o cinema. Martha está escrevendo seu segundo romance, uma saga familiar que se passa em Ipanema. Ela vive em Santa Mônica, na Califórnia, com seu marido e dois filhos."²



¹http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/1742222-editoras-estrangeiras-acolhem-escritora-brasileira-rejeitada-no-pais.shtml

² http://www.marthabatalha.com/pt/biografia/

sábado, 10 de dezembro de 2016

Resenha: um útero é do tamanho de um punho





 Angélica Freitas é uma poeta e jornalista gaúcha nascida em 1973, autora de Rilke Shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) e co-editora da revista de poesia Modo de Usar & Co. Com sua língua afiada, ela aborda as mais diversas questões sobre as mulheres em seu livro "um útero é do tamanho de um punho", publicado em 2012 também pela Cosac Naify. Se você ainda pensa que poesia é sinônimo de romantismo, você deve ler Angélica Freitas.

  Gordofobia e os padrões de beleza, mudança de sexo e seus desdobramentos no seio familiar, a classificação de mulheres que não se conformavam com os papéis reservados a elas na sociedade e na vida privada como "loucas" e "histéricas" e os maus-tratos que sofriam em manicômios mais parecem temas de um manifesto feminista do que de um livro de poesia, mas lá estão. Ora apresentados de forma delicada, ora irônica, ora pungente.


mulher depois
queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas
mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixa disso?
pois agora eu virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher


Acima: Zelda Fitzgerald foi uma escritora, pintora e bailarina que foi diagnosticada 
com esquizofrenia e internada em um sanatório em 1930, onde morreu durante um 
incêndioApesar de seus inúmeros talentos, ficou conhecida na história apenas como
 "a mulher louca de F. Scott Fitzgerald".
   Nesse poema, a palavra "enterra" significa tanto o abandono sofrido pela mulher e a perda de sua liberdade e autonomia quanto o comportamento da sociedade que desvia o olhar dessa realidade, a nega. Podemos ver um exemplo disso no genocídio ocorrido em Barbacena/MG. Os tratamentos desumanos e a execução dos internados no Hospital Colônia aconteceu de 1930 a 1980 e fez cerca de 60 mil vítimas¹. Tais atrocidades só ocorreram nessa escala e por tanto tempo porque a sociedade se omitiu, permitiu de forma silenciosa que isso continuasse.

  Se as mulheres não são mais internadas em manicômios, infelizmente o ato de chamá-las de "loucas", alegar "descontrole emocional" para desacreditá-las e até mesmo exercer torturas psicológicas perdura até hoje, sendo chamado de "gaslighting".
  A autora também aborda o machismo do dia-a-dia: o julgamento de como a mulher se veste, com quem tem relações sexuais, qual o espaço destinado a ela, como ela deve se vestir e comportar em público, seu tratamento como objeto sexual e as demais tentativas do sistema patriarcal em uniformizá-las e colocar como erradas as que não se encaixam no padrão estabelecido pelos homens.
"...mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço seu desejo
meu caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho..."

"...me dizia uma amiga que os churrascos
cabem aos homens porque são feitos 
fora de casa
às mulheres as alfaces
às alfaces as mulheres..."

"III. 
você comeria a joanna newson?
...
IV.
com base no texto publicado, pode-se dizer que joanna newson:
a.( ) é um bom pedaço de bife
b.( ) é uma salada de agrião"

"a mulher é uma construção
a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é para ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor..."
  Particularmente interessante nesse poema é a observação de que as mulheres devem ser "um conjunto habitacional" e "rebocadas". Reboco é o revestimento de argamassa de cal usado para cobrir as paredes, encobrindo seu interior e uniformizando a superfície. Já conjunto habitacional é um aglomerado de casas ou prédios que seguem um padrão. Além da colocação pelo eu lírico de que as mulheres devem ser todas iguais, a imagem do conjunto habitacional também sugere a restrição da mulher ao âmbito doméstico e que sua função se resume a ser "habitada" (durante a relação sexual ou na gravidez). O reboco também significa que o interior da mulher deve ficar escondido. Ela não deve demonstrar seus sentimentos verdadeiros, não deve dizer o que pensa.  
   Em entrevista à revista TPM², a autora conta que a inspiração para o poema que dá título ao livro veio quando foi acompanhar uma amiga num procedimento de aborto legal na Cidade do México e "...senhoras religiosas, católicas, chegaram em uma van e ficaram lá, tentando dissuadir quem faria o aborto. Rezaram, falaram com uma voz super mansa, mas o discurso era forte. Quase que uma intervenção traumática. Era super agressivo. E mesmo depois que as mulheres decidiam entrar pra realizar o aborto, esse grupo ainda continua lá para pressionar os parentes, rezando com megafone, insistindo...".
“...
um útero é do tamanho de um punho
num útero cabem capelas
cabem bancos hóstias crucifixos
cabem padres de pau murcho
cabem freiras de seios quietos
cabem as senhoras católicas
que não usam contraceptivos
cabem as senhoras católicas
militando diante das clínicas
às 6h na cidade do méxico
e cabem seus maridos
em casa dormindo
cabem cabem
sim cabem
e depois vão
comprar pão
…”

Normalmente, quando se pensa num útero, pensa-se em algo extremamente íntimo, escondido. A poetisa mostra como aquilo que pensamos ser privado na verdade está exposto, sendo vigiado por estranhos. O controle sobre este órgão não está nas mãos da mulher.

 Angélica também escancara uma importante questão: a de que as consequências do aborto ou da manutenção da gravidez cairão apenas sobre a mulher. As beatas e os padres que “entraram no útero” logo depois saem para comprar pão, ou seja, nada muda em suas vidas.

   Mais a frente no mesmo poema, o eu-lírico interrompe seu monólogo a respeito do útero e diz:

“...
questões importantes:

movimentação da bolsa
sacas de soja
reservas de água
barris de petróleo

voltemos ao útero
…”

 Vemos nesse trecho uma reflexão sobre como a despeito da seriedade da questão (a cada dois dias, uma mulher morre no Brasil em decorrência do aborto, segundo a OMS ) a discussão sobre o aborto não é vista como urgente pela sociedade. Vemos todos os dias no jornal sobre a queda ou alta da bolsa, mas não nos importamos com as mortes por aborto, não debatemos sobre essa questão.
Para mim, este livro é com certeza memorável. As poesias de Angélica tratam de assuntos comuns e ao mesmo tempo, muito relevantes. Ela dá voz desde à investidoras financeiras à mendigas. Seja você uma mulher engajada em tais questões ou uma que torce o nariz para as desconstruções, eu tenho certeza que em algum momento você irá se identificar, então não perca a chance de ler este livro. Um útero pode não dar soco, mas as palavras de Angélica com certeza dão.


Minha nota:


Abraços,
Bella

¹http://www.brasilpost.com.br/2016/11/09/holocausto-brasileiro-silencio_n_12882906.html
²http://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um-punho